quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Condolências ao ser humano sofrido


Tempos idos, que graças aos céus não voltam mais, me fazia de adolescente revoltada, e na mesma oportunidade, uma vizinha ricaça que da cerca de madeira fez um belo muro lindamente rebocado, empregava (ou talvez escravizava) uma negrinha arretada, sofrida, que vivia mostrando os dentes podres da boca.

A bela negrinha, magrinha, trabalhadeira, não tinha mais que 14 anos. Trabalhava muito, sorria bastante e corria demais para poder agradar a patroa perua que não suportava crianças e flores, mas tinha fissura em carros novos, belas jóias e amantes.

O nome fictício da negrinha sofrida só pode ser Matilde, não vem outro nome à cabeça da Loba.

Minha mãe sempre contava que a mãe dela era uma alcoólatra, que moravam em casa de pau a pique e que dava pra ver uma pessoa do lado de dentro. Complementava, com admiração que Matilde sustentava os irmãos menores com o pouco salário que recebia no trabalho escravo e que seu irmão mais velho era um andarilho que só Deus sabia onde estava.

Lembro dela na cozinha da minha mãe dizendo mais ou menos assim:

- Dona Cida, óia que fácim. A gente joga esses número aqui e se fizé a quina (loto) nóis fica ricu. Faiz seu jogo e dá o dinhêro que levo lá em riba (centro da cidade) e faço o jogo pra sinhora.

Ela já sonhava!

E começou com o tempo a sonhar com o casamento. Vestido branquinho, grinalda com flor de laranjeira e noivo ao lado de nome Malaquias*.

Lembro do casório de Matilde como se fosse agora. Teve inté churrasco!! Malaquias tava de terno, Matilde alugou um com suas economias. Começou bem Matilde, pagou o aluguel do terno do futuro marido e continuou vida a fora, sustentando outro alcoólatra e os três filhos que este lhe deu.

Minha mãe, a gorda italiana exigente, sempre a amou, dizia que mulher alguma fazia tão bem a limpeza que ela realizava, mas as duas “não prestavam juntas”, pois conversavam demais e o serviço não rendia. Por vezes, Matilde foi trabalhar levando consigo algum dos filhinhos que ela deixava em creches ou com alguma mocinha da vizinhança. Ela levava o mulatinho lindo (segundo filho) em um carrinho de criança que provavelmente ganhou de alguém, o mulatinho chorava e minha mãe dizia:

- Chora não negão! Sua mãe precisa trabaiá, vem no colo da vó que te dou uma bolacha.

E o mulatinho gargalhava...

Matilde dizia que queria que eu fosse a Madrinha do Cristiano*, eu não aceitei, pois achei muita responsabilidade (parece que eu tinha bola de cristal).

Na oportunidade, fiquei grávida do meu Paulo Gustavo e logo após, Matilde grávida do terceiro filho, que foi uma linda menina. Meu filho nasceu em fevereiro e a mulatinha dela rebentou em julho. Fui visitar, levar roupinhas, mamadeiras, etc, etc...

Meu Gustavo gordo e corado em meus braços, a mulatinha no bercinho pobre, chorava pelo colo da mãe e os outros puxavam sua saia, pedindo as guloseimas e presentes que eu havia levado. A mulatinha foi batizada com o lindo nome de Linda*. E toca o bonde...

Tocando o bonde com muita correria e força, Matilde comprou uma casa popular em bairro violento e distante da cidade, e transformou a caixinha de fósforos em casinha digna da inveja das vizinhas que não se esforçavam como ela. Matilde não aprendeu a falar, mas Matilde, como ninguém, tinha forças para trabalhar das 06:00 às 23:00 horas como a melhor diarista da cidade. Corriam boatos que Matilde na circular (ônibus) batia papo dizendo que havia pintado as janelas, trocado o piso da cozinha e até comprado as lajotas pra construir uma ridícula (entenda-se edícula) nos fundos. O mulherio do bairrozinho, morria de inveja e criticavam pra valer:

- Muié desnaturada, só pensa em trabaiá e sustentá o marido bebo dela. As criança fica largado na creche, e ela só pensa em fazê mansão na Jaboticabeira (bairro).

Meu filho tinha 12 anos completos, Linda 12 anos também (menos 5 meses). E linda já estava pra parir. Puta que pariu! Fiquei assustada demais, e Matilde sorridente e sob lágrimas, disse que ia ser vó e que o cara ia ter que dar ao menos o leite para o netinho....

Na mesma oportunidade, soube que Cristiano (14 anos) estava preso e que Matilde precisava de mim lá no Fórum. Fui lá...

- Doutora, esse menino está sendo aviãozinho de drogas, tem que ficar detido no Conselho Tutelar uns tempos.

Matilde continuou sorrindo e dizendo que o filho “ia se emendá dessa veiz”.

Pouco tempo depois, novamente Cristiano detido.

Cristiano magrinho... Cristiano sem “trabaiá e percisando de um serviço”... Cristiano “não querendo durmí e na rua o tempo todim”...

Ontem cedo, telefonema da Italiana gorda, senhora minha Mãe com M maiúsculo em prantos:

- Fia, mataram o Cristiano, fio da Matilde lá no Jabuticabeiras. Com seis tiro, ele tentou corrê, mas os homi pegaro ele.

Fui ao velório pedindo pra minha Italiana ficar por lá de boca fechada. Conduzi pelas mãos minha mãe gorda com dificuldades para andar até o caixão, em centro comunitário do bairro violento Jabuticabeiras.

No caminho fui dizendo pra minha Italiana que chorava de pena da protegida:

- Lembro da Matilde comprando loucamente Tele Senas e dizendo que ainda ia ficar milionária e me daria um carro zero. Lembro da Matilde gargalhando e chorando ao mesmo tempo. Lembro da Matilde levando porrada desde pequenina. Porque Deus permite que um anjo como ela tenha vindo ao mundo só para sofrer?

Em uma cadeira, estava prostrada a Matilde, magrinha, olhos fundos, cara de dopada, dentadura nova na boca larga, cabelos esticados e brancos.

Minha mãe, atenta e obediente aos meus conselhos, debruça-se sobre Cristiano, nos seus 17 anos, e começa a chorar, dizendo ao defunto bonito coberto de flores brancas:

- Negão, você dava tanta gargalhada pra vó, será que o filho da puta que fez isso com você não pensou na sua mãe???

E, depois de dito isso olha pra mim assustada.

Engulo em seco pensando:

- Italiana bocuda, você não tem jeito mesmo mãe.

Matilde, em esforço supremo levanta, se arrasta até minha mãe. Na gorda molenga Matilde se agarra, como se fosse uma tábua em alto mar, e lastima em voz alta.

- Meu fio era tão bonzinho, me dava tanto beijo, dizia que nunca ia me abandonar. Ele jantou e saiu, daí escutei uns barulhinho de bombinha. Daí ele vortou dentro dessa caixa. Por favor Dona Cida, traiz meu fio de vorta, minha vida acabô....

Matilde continua e com a mão frenética esfrega o rostinho de Cristiano, os cabelos, os braços do filho morto dentro da “caixa”. Lá fora, o Malaquias recebe os visitantes sobre o efeito da “marvada” pinga!

Seguro as lágrimas, mas elas teimaram em rolar, grossas, densas... Este é o nosso planeta azulzinho.

Todos os nomes foram alterados.

21/Maio/2008

Um comentário:

Marcelo P disse...

Tô impressionado, gostei muito, você escreve muito bem!!!